João José Cardoso | Terreiro da Erva: cadelas apressadas parem filhos cegos

A minha primeira memória do Terreiro da Erva é de ouvir contar: zona de prostituição legal, enquanto as senhoras de bem não convenceram Salazar a terminar com a pouca vergonha pública, ilegal posteriormente, consta mesmo que foi nessa zona que José Afonso se inspirou para escrever o magnífico Lago do Breu:
era tal como a R. Direita sinónimo de ignomínia e mau-viver. Ainda sou do tempo em que mandar a mãe de outro trabalhar para tais locais era forma tida por elegante de não lhe chamar puta.
Mas o Terreiro, ou melhor, a sua zona, tem outras memórias, bem mais remotas. No séc. XI, era um arrabalde já fora de portas, ali foi construída uma igreja, doada em 1102 aos cluniacenses para lhes servir de albergaria. Teve claustro, anexos, e deve ter sido fustigada logo aí pelas inundações do Mondego, causa provável de novas reformas no séc XIII ou XIV. O nosso rio não desistiu, convidado pelo assoreamento, e em 1708 fez estragos, levando à construção de S. Justa-a-Nova, na actual R. Figueira da Foz.
Da velha igreja sabemos que no princípio do séc. XX “qualquer pessoa de mediana estatura, sem abandonar o terreno, poderia chegar com a mão aos restos da abóbada da igreja”. Mais tarde ter-se-á procedido à terraplanagem, ficando o Terreiro com a sua actual dimensão.
Há lugares que parecem amaldiçoados, tal a sina a que os homens os votam. Cada vez mais degradado e abandonado, tem sido no nosso século objecto de vários projectos. De parque de estacionamento subterrâneo a esta aberração:
fiel à velha escola Cottinelli Telmo, o homem que nos arrasou a Alta com todo o seu riquíssimo património que nem houve tempo para estudar, a lei do camartelo a que chamam progresso insultado o progresso, tem assumido várias formas, ignorando o que o subsolo e não só guarda.
Com efeito a igreja de S. Justa-a-Velha está lá, mesmo que desconheçamos o que sobra da ruína, mas sendo certo e seguro que guarda um precioso campo arqueológico.

Detalhe de uma fotografia onde são bem visíveis os topos da capela-mor e de uma lateral, incorporadas numa construção que se mantêm.
Chegamos então ao ano da graça de 2014, em que sendo Presidente da Câmara Manuel Machado nos surge um novo projecto. Feitas sondagens arqueológicas e havendo o risco de alguém se lembrar da igreja, tenta-se aprovar rapidamente e sem discussão pública. Protesta o vereador dos Cidadãos por Coimbra e é aprovado um mês de discussão pública. Na passada quarta-feira um jornal local publica isto:
Até meados da próxima semana, a Câmara Municipal de Coimbra está a aceitar propostas no âmbito da discussão pública do projecto de requalificação do Terreiro da Erva. A partir daí, é preparar o lançamento do concurso para que a obra esteja concluída até final de 2015.
E o prazo é um imperativo do contrato de financiamento com o Banco Europeu de Investimento, adiantou, ontem, Manuel Machado, numa sessão na autarquia, com a presença de comerciantes e moradores daquela zona da cidade, que encerrou o périplo “Arrancado do Papel” (a assinalar um ano de mandato).
Alguém encontra, na página do município que seja, um aviso de que se deu início à tal discussão pública? Eu não. Foram consultados os arqueólogos da cidade (que diabo, temos uma Universidade e alguns dos melhores peritos nacionais em arqueologia)? falei hoje mesmo com alguns, incluindo o seu decano, e de nada sabiam.
Compreendo o “imperativo do contrato de financiamento”, não compreendo que mesmo ao lado da Rua da Sofia (invocada por sabedoria, conhecimento) Património da Humanidade se tenha a ingenuidade de imaginar que removendo apenas meio metro do solo não se vá revolver um campo arqueológico (que de resto não se limita à igreja e eventuais anexos, inclui vestígios industriais). E muito menos que não se entenda o óbvio: num terreno como este em primeiro lugar estuda-se, investiga-se, recolhe-se a informação preciosa que aquele chão nos guardou (abençoado Mondego que escondeste o que os homens não destruíram) . Depois, verificado o estado da ruína, projecta-se.
Se a ruína permite e convida à sua musealização, ninguém sabe. Que essa possibilidade seria a sorte grande, fazendo da praça muito mais que qualquer outra com bancos e árvores (que já agora têm raízes e não se podem plantar onde nos apetece), não tenho a mínima dúvida, nem a terá quem tenha o mínimo de sensatez.
Se compreendo imperativos de financiamentos, não entendo que não se tenha percebido isto, depois de S. Clara-a-Velha, com outra dimensão mas que todos recordamos como uma ruína abandonada, e hoje é um pólo de atracção turística. Ainda por cima falamos do Terreiro da Erva, entre a R. da Sofia e a Judiaria Nova, que um município avisado já teria procurado se dela restam vestígios, pensando no circuito do turismo judaico/sefardita, que não se pode limitar às celas da Inquisição, e pelos vistos abandonou o espaço de banhos rituais recentemente encontrado na Visconde da Luz.
Falemos pois de financiamentos, já que pelos vistos nem todos podem entender a linguagem da Cultura, Arte e Património: se isto não é dinheiro, se fingimos não ver o que pode ser uma mina de ouro, onde é que ele está? para onde vai o tal financiamento se a obra for embargada, atrasando-a irremediavelmente, já que entre iniciar uma escavação planificada e efectuar uma de emergência o tempo se dilata?
Cadelas apressadas parem filhos cegos e não há entre os humanos pior cego do que aquele que não quer ver.
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Excelente artigo. Quanto a estas consultas públicas estamos conversados – uma farsa. Se podia ser de outro modo? Claro que podia. E é para isso que cá estão os Cidadãos por Coimbra.
Excelente exposição, fundamentalmente pela sua riqueza de conteúdo relativamente a achados geoculturais desta nossa linda cidade de Coimbra que, inequivocamente alberga um património cultural muito valioso e quiçá(?) sub-explorado pelos nossos arqueólogos que, ao que parece, tampouco tiveram ou têm a possibilidade de se manifestar relativamente à questão do “Projecto de Requalificação do Terreiro da Erva”. E, vá-se lá saber porquê!(?)…
Enfim!…é lamentável! Certamente “o imperativo do contrato de financiamento” deve ser um Ex Libris, no sentido de favorecer “INTERESSES” mais altos…de alguém!
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