Três Vezes Nove

QUEREMOS OU NÃO CONSTRUIR UMA CAPITAL DA CULTURA EM QUE TODOS SE RECONHEÇAM, QUE SEJA UM MOTIVO DE ORGULHO E DE BEM-ESTAR PARA TODOS, QUE DÊ A CONHECER À EUROPA A VERDADEIRA ALMA DE COIMBRA?

No recentíssimo Forum sobre a candidatura de Coimbra a Capital Europeia da cultura 2027, a que deram o nome de FOR1C, várias intervenções focaram a necessidade de se trabalhar com os cidadãos de Coimbra. Mas foi sobretudo a comunicação do Professor Elias Torres Feijó, da vizinha Galiza e tomando a experiência de Santiago de Compostela, que deu mais força a essa linha de trabalho que reputo essencial: as culturas dos que cá vivem são a base de partida para a afirmação da especificidade de uma Cidade que foi feita, adivinhem por quem?, pelos que cá vivem. 

Coimbra tem uma identidade rica, porque compósita, acumulada de muitas experiências diferentes, vividas em épocas sucessivas por mulheres e homens que foram chegando e ficando na Cidade e nas aldeias em torno, construindo as suas casas, trabalhando nas oficinas, fábricas, campos, escritórios e comércios, escolas, repartições, criando as suas filhas e netos, criando as suas falas, festas e cantares. 

Queremos ou não construir uma capital da cultura em que todos se reconheçam, que seja um motivo de orgulho e de bem-estar para todos, que dê a conhecer à Europa a verdadeira alma de Coimbra? Para isso, não podemos, como aliás sublinhou Susana Menezes, Diretora Regional da Cultura do Centro, “festivalizar” e deixar os cidadãos no passeio a ver passar o cortejo janota.

 

Explicando melhor, para que não fique qualquer ideia de que se trata de uma visão passadista romântica, nem de teimosia ideológica. 

  1. Coimbra tem uma forte presença de cultura camponesa, muito ligada aos férteis campos do Mondego, de um lado e de outro do Rio, ao qual se associaram outras artes, como, por exemplo, os moinhos de água (em grande número e muito esquecidos em Cernache). As cheias do Rio marcaram essa cultura e por sua vez a luta humana para drenar os excessos de água às portas da Cidade e, mais tarde, domar o Rio tem essa marca (Choupal, Parque Manuel Braga, Largo das Ameias). As feiras, grandes e pequenas, têm essa marca. Nos quintais do centro histórico cultivam-se, há centenas de anos, legumes e frutos.
  2. Coimbra tem uma forte presença de cultura serrana, ligada à floresta, à lenha, aos viveiros de árvores, ao pastoreio de ovelhas e cabras e seus derivados gastronómicos. O fogo e o combate às chamas marcaram esta cultura. As aldeias são pequenas e dispersas, as identidades coletivas fortemente enraizadas, exprimem-se em festas e romarias por caminhos inclinados e duros. Há artesanatos relacionados, tecelagens em Almalaguês, cesteiros noutras aldeias, barqueiros nas Torres do Mondego.
  3. Coimbra tem uma forte cultura ferroviária, que significou para muitos homens a alternativa ao duro labor do campo e a possibilidade de aprender noutras paragens novas ideias e sentimentos de pertença a uma classe mais vasta. Nas grandes oficinas de Coimbra B, os fossos onde se andava por baixo das locomotivas a fazer reparações estão tão intactos como os cartões dos trabalhadores que aí picavam o ponto. Esta cultura ferroviária cruza os campos do Mondego na margem esquerda, mas também as zonas serranas para as bandas de Ceira, a Norte o Loreto, a Adémia, Souselas.
  4. Coimbra tem uma forte presença da cultura cimenteira e cerâmica, cujos fornos devoraram durante décadas as energias de milhares de operários do barro e do cimento. É impensável falar em espaços para regeneração urbana e não virem imediatamente à lembrança a Sociedade de Porcelanas, em plena cidade, a Estaco a norte, a Poceram a sul, a Argus a poente, etc.. Nalguns destes pavilhões industriais desativados é possível instalar muitas atividades criativas, ligadas às artes, à música, à cultura, como fizeram outras cidades europeias.
  5. Coimbra tem uma forte presença de cultura tipográfica e editorial. Há ainda um importante parque gráfico ativo, mas há sobretudo a memória viva de centenas de trabalhadores que compunham em chumbo livros e teses de doutoramento, as imprimiam, cortavam, encadernavam. A forte presença da academia viria a multiplicar, em tempos mais recentes as gráficas de sebentas e fotocópias. O centro histórico, alta e baixa, tem essa memória muito viva, mas outras gráficas importantes se instalaram noutros pontos da Cidade e arredores.
  6. Coimbra tem uma forte presença de cultura escolar, jardins de infância, escolas dos vários ciclos, educadores e professores, funcionários administrativos e auxiliares, politécnicos e faculdades, fortes instituições de ensino e apoio à deficiência, livrarias e papelarias, refeitórios e cantinas, transportes de crianças e jovens. Esta cultura marca a Cidade onde a valorização da escola se quer uma constante e as atividades desportivas e artísticas têm um peso muito grande. Não é possível pensar a capital da cultura sem uma fortíssima aposta nas escolas. Para tal, toda a rede educativa tem que inspirar e expirar a cultura que se quer capital.
  7. Coimbra tem uma forte presença de cultura hospitalar e de múltiplas unidades e empresas ligadas à saúde, à medicina, à enfermagem, aos serviços de suporte, lavandarias, confecção de refeições, instrumentos e consumíveis. Milhares de trabalhadores que aí passam o melhor das suas vidas, se cruzam nos bares, nas enfermarias e elevadores, de que falam? Que cultura produzem e consomem? Que querem elas e eles da sua Coimbra capital da cultura? Não acreditam? OK, mas e se pudessem, se alguém se interessasse pela sua opinião, que diriam? Um hospital com mais livros? Música no auditório? Cinco minutos de teatro contra o cansaço das urgências?
  8. Coimbra tem uma forte cultura feminina têxtil, das malhas e confeções que marcaram a Cidade desde o seu miolo, rodeando depois para as periferias. Estão aí as operárias, podem falar de si e dos seus fabricos, do ambiente da fábrica, do que produziam, dos chefes e dos patrões, das sirenes, da dureza e das alegrias. Estão aí, mas estão hoje separadas, nas casas. E se se juntassem, que diriam? Que teriam para contar e acrescentar à cultura de todos?

 

É ou não desejável alargar a roda do debate sobre o que queremos desta caminhada cultural, deste renascer de brio pela Cidade do futuro, organizando debates em zonas de Coimbra, coletividades, freguesias, escolas? A capital da cultura não é propriedade de ninguém, não é coisa do Machado. Não é uma gala no São Francisco. É, pode ser, nossa. Porque não havemos de começar já a discutir o que queremos dela?

Sim. E há os estudantes, as suas lutas e os seus amores. Sim. Há os monumentos e os museus presentes e os por fazer. Sim. Há as startups e as spinoffs. O Pedro e a Inês. Sim, há a canção de Coimbra. Há os bairros mais antigos e os mais modernos, Há tudo aquilo em que somos bons e diferentes. É aí que bate o ponto. 

Importa, sobretudo, não esquecer. O que faz a alma de uma Cidade, única e inimitável, é a cultura dos que lhe deram origem. Os cidadãos e as cidadãs, de ontem e de hoje. Como muito bem disse o Professor Elias Torres Feijó, o visitante culto procura autenticidade, pessoas, vivenciar história real e não apenas efémeras fotos.

 

Jorge Gouveia Monteiro, Coordenador do CpC.

Artigo de Opinião Publicado no Diário as Beiras, 27 e 28 de Março, 2019

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